O forte espírito de emancipação palestiniano

Vijay Prashad -

Há décadas que faz parte da agenda israelita enfraquecer a esquerda palestiniana –em especial a FPLP– e, desse modo, reforçar as forças islamistas. Isto permite-lhes fazer crer, falsamente, que se trata de uma guerra contra o islamismo e não de uma campanha brutal para extinguir a nação palestiniana

 

 É impossível engarrafar esta sensibilidade. Toda a Faixa de Gaza está em ruínas. Milhões de palestinianos enfrentaram o Inverno em tendas improvisadas ou em edifícios em ruínas, com as suas crianças a congelar (algumas morreram congeladas) e a fome a aumentar. O cheiro da vingança israelita está por todo o lado. O som dos tanques e o silêncio aterrador das bombas que caem abalam os nervos até do combatente mais duro. No entanto, as unidades armadas da resistência palestiniana continuam a disparar as suas munições esgotadas contra as tropas israelitas. Ao mesmo tempo, crianças correm entre os destroços tóxicos com bandeiras palestinianas hasteadas.

 Actualmente, há um cessar-fogo. Mas este é o ritmo da história palestiniana desde, pelo menos, 1948: ocupação, guerra, cessar-fogo e, por baixo de tudo, a ocupação constante e a ameaça de guerra e, no entanto, o desafio e os sorrisos. No léxico da resistência palestiniana, a palavra sumud, utilizada pela primeira vez na década de 1960 pela Organização de Libertação da Palestina, é tudo: significa desafiar, ser firme, agarrar-se à sua terra apesar da ocupação israelita. É pegar na chave da nossa casa palestiniana anterior a 1948 e erguê-la.

 Quando Khalida Jarrar surgiu no meio da multidão de apoiantes, depois de meses nas cruéis masmorras de Israel, disse: «Estou a sair da solitária. Ainda não acredito. Estou um pouco cansada». Jarrar, uma das líderes da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP), tem entrado e saído das prisões israelitas durante quase toda a sua vida adulta. A sua primeira detenção foi em Março de 1989, quando participou numa marcha para o Dia Internacional da Mulher. Acompanhei o seu percurso dentro e fora da prisão, catalogando a sua angústia quando os seus captores a impediram de estar presente nos funerais do pai (2015), da mãe (2018) e da filha Suha (2021). Jarrar é um dos milhares de palestinianos que estão detidos em prisões israelitas sob «detenção administrativa», um rótulo falso que justifica a prisão por tempo indeterminado sem acusação.

 De cada vez que Jarrar ia para a prisão, o comportamento dos seus captores israelitas era cada vez mais duro. Desta vez, detida durante o genocídio, em Dezembro de 2023, foi colocada numa cela com pouca ventilação e não conseguia respirar com facilidade. O seu marido, Ghassan Jarrar, leu uma declaração sua de Agosto de 2024:

 «Morro todos os dias. A cela parece uma caixa minúscula e hermética. A cela está equipada com uma sanita e uma pequena janela por cima, que foi fechada um dia depois de eu ter sido transferida para lá. Não me deixaram qualquer espaço para respirar. Até a chamada vigia da porta da cela estava fechada. Passo a maior parte do tempo sentada junto a uma pequena abertura que me permite respirar. Espero que as horas passem enquanto sufoco na minha cela, na esperança de encontrar moléculas de oxigénio para respirar e sobreviver.»

 Agora, Jarrar deixa a prisão juntamente com outros 90 prisioneiros palestinianos que foram trocados por três prisioneiros israelitas na primeira parte do acordo de cessar-fogo. As histórias dos prisioneiros são espantosas e revoltantes. Os israelitas prenderam uma jovem palestiniana (Shatha Jarabaa) por ter escrito nas redes sociais sobre a «brutalidade» do genocídio. Outro jovem (Zakaria Zubeidi), do Teatro da Liberdade, em Jenin, foi detido sob suspeita de ser terrorista.

 Duas outras mulheres da FPLP, Abla Sa'adat e Maysar Faqih, foram detidas pelos israelitas sem qualquer acusação e mantidas em prisão administrativa, como parte da estratégia geral israelita de impedir os grupos palestinianos de exercerem actividades políticas. O líder da FPLP, Ahmad Sa'adat, está na prisão há décadas e provavelmente só será libertado quando a ocupação terminar. Há décadas que faz parte da agenda israelita enfraquecer a esquerda palestiniana –em especial a FPLP– e, desse modo, reforçar as forças islamistas. Isto permite-lhes fazer crer, falsamente, que se trata de uma guerra contra o islamismo e não de uma campanha brutal para extinguir a nação palestiniana.

É a ocupação

 Em Agosto de 2014, soldados israelitas cercaram a casa de Khalida e Ghassan Jarrar. Vieram informar Khalida Jarrar de que estava proibida de sair da sua casa em Ramallah e que tinha de se restringir à cidade de Jericó. «É a ocupação que tem de abandonar a nossa pátria», diz ela aos soldados. Depois, ela e os seus camaradas montaram uma tenda em frente à sede do Conselho Legislativo Palestiniano e aí viveram. Os israelitas tiveram de recuar. Havia demasiada pressão internacional sobre eles.

 As pessoas sob ocupação são pessoas presas. Os palestinianos em Jerusalém Oriental, em Gaza e na Cisjordânia – o Território Palestiniano Ocupado, como lhe chamam as Nações Unidas – não têm liberdade de movimentos. Estão enjaulados. Aqueles que querem quebrar a jaula são ainda mais presos nas terríveis condições das prisões israelitas. Não admira, portanto, que Khalida Jarrar tenha sido, de 1993 a 2005, directora da Addameer, uma organização sem fins lucrativos que presta apoio aos prisioneiros. Quando não está numa prisão israelita, tem estado a trabalhar num projecto de investigação para o Instituto Muwatin para a Democracia e os Direitos Humanos da Universidade de Birzeit sobre «As dimensões de classe e de género do movimento dos prisioneiros palestinianos e as suas implicações para o projecto de libertação nacional».

 É provável que, daqui a alguns dias, Jarrar saia de casa, faça um discurso e depois volte a trabalhar no seu projecto. Feita de aço e de amor, Jarrar é incansável. Tal como os palestinianos que estão a regressar lentamente às suas casas destruídas em Gaza, procurando fotografias perdidas e os poucos pertences que restam; as raízes que não foram cortadas.

 

[Artigo tirado do sitio web portugués Abril Abril, do 29 de xaneiro de 2025]

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