A rendicão da Europa e a resistência do Brasil

José Luís Fiori -

Após a rendição incondicional aos EUA, vários governos europeus enfrentam uma impopularidade crescente, enquanto a economia europeia afunda cada vez mais na recessão ou estagnação prolongada

 Depois da retirada de Donald Trump da 51ª. Cúpula do  europeia das exigências americanas na 38ª. Cúpula da G7, em Kananaskis, no Canadá, e da aceitação OTAN, realizada na cidade Haia, na Holanda, o presidente norte-americano submeteu a Europa a mais  um espetáculo vexaminoso no seu resort de Turnberry, na Escócia. 

 Durante um fim de semana de férias, e entre uma partida e outra de golfe, recebeu em sua casa particular, para uma cerimônia de “beija-mão” quase medieval, o primeiro-ministro britânico, Sir Keir Starmer, ao qual negou o pedido de revisão da tarifa de 50% que o próprio Trump havia imposta às exportações inglesas de aço e o alumínio ingleses para o mercado norte-americano. Logo em seguida, recebeu a Sra. Ursula von der Leyen, presidenta da Comissão Europeia, e lhe impôs um “acordo comercial” escorchante, um verdadeiro “tratado infame”, do tipo que os europeus costumavam impor aos asiáticos e à China, em particular, no século XIX. 

 Pelo novo “acordo”, a União Europeia comprometeu-se a “zerar” as tarifas alfandegárias de todas as importações industriais dos EUA, e aceitou a imposição de uma tarifa linear de 15% sobre todas suas exportações para o mercado norte-americano. Além disso, a União Europeia comprometeu-se a comprar U$ 750 bilhões de gás liquefeito, petróleo e energia nuclear produzidos nos EUA, aceitando investir U$ 600 bilhões, até 2028, em setores estratégicos da economia estadunidense. Por fim, jurou não taxar as redes sociais americanas, um tema sobre o qual Donald Trump vem insistindo e ameaçando constantemente. E a clemência pedida pelos europeus, com relação à tarifa de 50% sobre seu aço e alumínio, foi jogada para algum momento indeterminado do futuro. 

 Assim, se somarmos os termos desse “acordo comercial” ao compromisso assumido na reunião de Haia pelos países europeus da OTAN – de gastar 5% de seus orçamentos anuais em defesa, e a maior parte deste valor na compra de armamentos norte-americanos –, podemos concluir, sem nenhum exagero, que a Europa acabou de aceitar e assumir plenamente, em 2025, sua condição de “vassala militar” dos EUA, agregando-lhe sua nova condição de dominium econômico norte-americano – mesma posição ocupada, no passado, por Canadá, Austrália e Nova Zelândia com relação ao antigo Império Britânico.

 De forma paralela, e um pouco antes do seu passeio na Escócia, Donald Trump anunciou sua decisão, absolutamente unilateral, de impor uma tarifa linear de 50% sobre todos os produtos brasileiros exportados para os EUA. Uma sanção econômica sem nenhum motivo comercial, porque o Brasil é deficitário no comércio com os EUA há muitos anos, como todos sabem e já disseram reiteradas vezes. Por outro lado, o motivo alegado por Trump – em defesa do ex-presidente brasileiro que foi condenado pela tentativa de um golpe de Estado com assassinato de seus adversários – também parece ser muito artificial e forçado, uma vez que a figura desse ex-presidente é inteiramente irrelevante do ponto de vista do projeto global de Trump. Neste sentido, tudo indica que a verdadeira motivação do ataque americano contra o Brasil seja uma retaliação contra a política externa do governo brasileiro de aproximação com a China e de liderança dentro do grupo do BRICS. E talvez, ainda mais de retaliação contra a posição brasileira de denúncia do genocídio da população palestina da Faixa de Gaza, por parte do governo de Israel.

 Chama atenção, neste sentido, que o anúncio de Trump da sanção contra o Brasil tenha sido feito no mesmo momento em que o presidente norte-americano recebia na Casa Branca o primeiroministro Benjamin Netanyahu para reafirmar seu apoio incondicional à política israelense de extermínio e/ou expulsão dos palestinos da Faixa de Gaza. Ocasião em que o primeiro-ministro de Israel (acusado de “genocídio” no Tribunal Internacional de Haia) fez a patética proposta de concessão do Prêmio Nobel da Paz ao seu principal aliado e financiador deste mesmo massacre que vem sendo denunciado permanentemente pelo presidente brasileiro.

 Reforçando esta hipótese, aliás, também chama atenção o fato de que uma semana antes do anúncio da visita de Netanyahu a Washington e do “tarifaço punitivo” de Donald Trump contra o Brasil, a revista The Economist tivesse publicado uma matéria – na edição do dia 29 de junho – acusando a política externa do Governo Lula de ser “incoerente” e “hostil ao Ocidente”, exatamente por sua denúncia e condenação do genocídio de Gaza e do ataque militar de Israel contra o Irã. Segundo a revista inglesa, essas posições teriam colocado o Brasil numa condição de isolamento dentro do “mundo ocidental” – ou seja, para bom entendedor, de “isolamento” com relação a Israel, à Grã-Bretanha e aos Estados Unidos. 

 Quando se leem os acontecimentos desta forma, entende-se melhor a facilidade com que o The Economist mudou sua posição frente ao Brasil, ao lado de vários outros jornais europeus e norteamericanos, incluindo o The New York Times. Estes passaram a elogiar a resposta do governo brasileiro frente ao “tarifaço” de Trump, por sua corajosa resistência ao assédio e às ameaças comerciais norte-americanas, reconhecendo a liderança internacional do presidente Lula e sua altivez na defesa da soberania e da democracia brasileiras. O jornal espanhol El País chegou a classificar Lula como o único governante de um país ocidental que foi capaz de resistir aos delírios imperiais de Trump, ao declarar em alto e bom som, que “Trump havia sido eleito para governar os EUA, e não para ser o imperador do mundo”. E a própria The Economist, na edição seguinte, em 28 de agosto, afirmou na sua matéria de capa que “o Brasil estava oferecendo aos Estados Unidos uma lição de maturidade democrática”(1). Ou seja, tudo parece confirmar que o verdadeiro motivo do ataque ao Brasil não foi o comércio nem a defesa da “liberdade de expressão”, mas sua política externa ao lado da China e do BRICS, e em particular, contra o genocídio praticado pelo governo israelense de Netanyahu.

 Os EUA são a maior potência econômica, financeira e militar do mundo e, portanto, sua relação com o Brasil, deste ponto de vista, será assimétrica ainda por muito tempo. Isso limita a possibilidade de o Brasil retaliar economicamente os EUA, como fizeram os chineses, obrigando os norte-americanos a recuarem depois do seu ataque inicial. Mesmo assim o presidente brasileiro não se deixou achincalhar, como aconteceu com os líderes europeus, e se propôs a negociar, colocando-se aberto ao diálogo, mas sem se humilhar frente ao presidente americano. Mais do que isso, na sua condição de atual presidente do grupo dos BRICS, vem promovendo uma mobilização de suas principais lideranças, buscando coordenar uma resposta coletiva que impeça que Trump separe seus Estadosmembros, jogando uns contra os outros e negociando com cada um em separado, usufruindo de sua assimetria de poder.

 Por fim, cabe observar que, neste momento, após a rendição incondicional aos EUA, vários governos europeus enfrentam uma impopularidade crescente, enquanto a economia europeia afunda cada vez mais na recessão ou estagnação prolongada, e a economia brasileira segue crescendo. E em agosto, um mês depois do tarifaço de Trump, o Brasil viu suas exportações para os EUA terem uma queda natural de 18,5%, mas o comércio exterior brasileiro, como um todo, registrou um superávit de U$ 6,1 bilhões – um aumento de 35,8% em relação ao mesmo período de 2024 – e as próprias exportações cresceram 3,9%, totalizando U$ 29,86 bilhões. Uma extraordinária vitória da coragem e altivez frente a covardia e humilhação das lideranças europeias atuais, talvez a geração mais medíocre da história política da Europa desde a II Guerra Mundial.

 Por outro lado, no campo diplomático e geopolítico, a diplomacia brasileira (e o presidente Lula, em particular) obtiveram uma grande vitória ao promover a reunião extraordinária dos paísesmembros do BRICS do dia 8 de setembro, com a participação virtual dos líderes de China, Rússia, África do Sul, Egito, Irã, e Indonésia, além do chanceler da Índia, do Vice-Ministro de Relações Exteriores de Etiópia e do príncipe herdeiro dos Emirados Árabes Unidos. Ocasião em que reafirmaram sua crítica conjunta ao tarifaço de Trump e a todo tipo de sanções econômicas unilaterais aplicadas pelos EUA e pela União Europeia contra os demais países e economias do sistema internacional. Mais um ponto a favor da resistência e da diplomacia brasileira. 

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 (1) Braun, J. “O que o Brasil pode ensinar à América”, The Economist, 28 ago. 2025.

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[Artigo tirado do Boletim no. 13, setembro de 2025, do Observatório internacional do século XXI]

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