A economia de guerra em preparação

Daniel Vaz de Carvalho -

No ocidente vivemos uma economia de guerra: contra os pobres, contra os trabalhadores, contra todos os que não seguem a globalização neoliberal e as “regras” definidas pelos EUA. No RU, o primeiro-ministro Sunak pretende aumentar os gastos com defesa para 2,5% do PIB, como resposta às "ameaças à segurança global". Impor uma economia de guerra, dá jeito para calar as contestações que percorrem a UE/NATO

«É óbvio que a nossa sociedade não é capaz de conduzir um discurso honesto, lógico e razoavelmente informado sobre assuntos relevantes. Em vez disso, experimentamos fantasia, fabricação, estupidez. É evidente que os nossos líderes nacionais, eleitos ou nomeados, são igualmente incapazes de deliberação sóbria, honestidade intelectual, lógica elementar, até mesmo de reconhecer realidades factuais» (Michael Brenner)

Os apelos à guerra

 Está em curso a propaganda de guerra contra uma “invasão russa”. Algo estranho depois da propaganda mediática propalar a derrota da Rússia com a “bomba atómica” das sanções e as “armas maravilha” da NATO. A segurança era tal que a NATO com o seu acessório UE, se recusou negociar um tratado de segurança coletiva com a Rússia, nem está disposto a negociações. Quem não esquece a História sabe que algo semelhante se passou com a URSS antes da Segunda Guerra Mundial.

 A democracia é viciada devido à ignorância pública generalizada sobre assuntos internacionais e nacionais. A propaganda de guerra faz parte deste objetivo. Os vassalos de serviço, tentam que os tambores de guerra soem cada vez mais alto. O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, pediu à “Europa” que avance para uma “economia de guerra”. Fala-se na necessidade de relançar a economia europeia (em estagflação), concentrando-se na indústria da defesa e em apoiar a Ucrânia, ou o que resta graças aos delírios hegemónicos, “até onde for preciso”.

 O mais que desacreditado Macron, diz:  "Talvez em algum momento – não quero – teremos que ter operações [de tropas francesas na Ucrânia], para combater as forças russas". O triunfalismo da ignorância e subserviência deste representante da oligarquia sobre o que diz ser “a nossa Europa” transforma-se em pânico:  "A nossa Europa pode morrer", e isso depende das nossas escolhas. Mas essas escolhas precisam ser feitas agora.” "A condição sina qua non da nossa segurança é que a Rússia não vença a guerra de agressão contra a Ucrânia." Nestas patéticas declarações falta esclarecer o que significa a Ucrânia ganhar e a Rússia perder, e como pensam consegui-lo.

 Dos EUA vem a bula imperial:  “A fronteira entre a Ucrânia e a Rússia é a nossa fronteira!” Congressista Gerald Connolly. (Gepolitics Live, Telegram, 20/04) É facto que o nervosismo percorre as belicosas hostes “atlantistas”, que se sentem inseguras porque a Rússia está junto a países onde instalaram bases militares… contra a Rússia. A nulidade Stoltenberg vai a Kiev dizer que "o trabalho que estamos realizando agora representa um caminho irreversível para a adesão à NATO." Será que não percebe que isso pode representar a terceira guerra mundial? Como é que nenhum “comentadeiro” reparou nisto?

 Desde o início da guerra na Ucrânia, mais de 150 proprietários de agências de comunicação, ofereceram-se para ajudar o governo ucraniano nas suas comunicações. Este combate mediático desenrolou-se em dois planos:  apresentar a Rússia como uma ditadura, uma economia incapaz, um país atrasado e corrupto, com um exército desmoralizado e uma indústria de defesa em ruínas; falar dos fracassos da NATO como sucessos.

 É esta “indústria informativa” que na UE/NATO permite entregar o poder aos políticos mais incompetentes do passado recente e a uma burocracia omnipotente colocada, por via das dúvidas, acima dos processos democráticos. Estas coisas não acontecem por acaso, são consequência, como diz James Kunstler, da Lei de Murphy na geopolítica em que a manipulação mediática é parte ativa.

 Apelar a mais guerra mostra que os objetivos dos EUA e da UE/NATO falharam. Porém, o maior falhanço é nem sequer serem capazes de apresentar um plano consistente para o futuro. O facto dos governantes europeus e os seus chefes militares serem incapazes de avaliar o que representaria uma guerra com a Rússia, é outro elemento que demonstra a sua incapacidade política e estratégica.

 Ignoraram as preocupações e protestos da Rússia quanto à sua segurança cercando-a de bases da NATO, financiaram e armaram o aventureirismo neonazi ucraniano e "revoluções coloridas" russofóbicas, como atualmente tentam na Geórgia. Em 2019 um relatório da Fundação Rand, "Sobrecarregando financeiramente e desequilibrando a Rússia”, evidenciava a sobranceria que domina a racionalidade nos EUA, seguida acriticamente pelos vassalos europeus: “A Rússia sofre de muitas vulnerabilidades, os baixos preços do petróleo e do gás causaram uma queda nos padrões de vida, sanções económicas promoveram esse declínio, (…) Tais vulnerabilidades são associadas às ansiedades sobre a possibilidade de uma mudança de regime de inspiração ocidental.” Não é coincidência que em 1941, os nazis invadindo a União Soviética, consideravam que "bastava dar um pontapé na porta para tudo se desmoronar."

 Não parecia portanto difícil levar a Rússia a um estado de degradação e isolamento, com a população a revoltar-se contra Putin colocando no Kremlin “democratas liberais” submetidos às “regras da ordem internacional” ditadas de Washington. Nada do que fantasiavam aconteceu. A vitória esmagadora de Putin nas eleições com participação recorde (e bastantes observadores internacionais) deitou por terra as manobras de “mudança de regime”. Os sonhos da burocracia europeia, que se via a dirigir uma “Europa geopolítica” desmoronaram-se tendo de se limitar à sua irrelevância.

 As sanções acabaram ajudando economicamente a Rússia enquanto arrastaram o Ocidente para estagnação, inflação, mesmo recessão. Na cegueira do que representaria uma guerra que envolvesse todo o continente a irresponsável burocracia europeia não vê outra saída para a situação que criou senão criar mecanismos financeiros para as indústrias militares e que essa despesa seja considerada nos empréstimos do Banco Europeu de Investimento.

 A economia de guerra que freneticamente querem implantar na cabeça das pessoas, representa afinal o somatório dos seus fracassos económicos, políticos, diplomáticos e militares.

 O presidente da CE, Charles Michel, apresenta estas políticas como uma forma de criar emprego e crescimento, pode tomar como exemplo a Ucrânia, cuja falta de mão de obra é evidente e, meia destruída, tem um enorme potencial de crescimento. Só falta esclarecer uma coisa: quem paga as visões geopolíticas da UE/NATO e as suas "agendas"? As agendas da descarbonização, da transição energética, da economia digital, agora a da "defesa". Se fossem para ser levadas a sério, levariam a UE a competir em termos de endividamento com os EUA. Isto sem falar na falhada "revolução 4i"...

Uma economia de guerra

 Os EUA mandaram pôr em marcha uma economia de guerra, as ditas elites obedecem, sem se preocuparem em saber se na UE/NATO estamos dispostos a morrer para que a Ucrânia entre para a NATO e Rússia se integre na "ordem internacional baseada em regras". Para acalmar Macron e os demais, Putin avisou que: "Qualquer envio de tropas francesas seria considerado uma invasão. Essas tropas seriam um alvo legítimo para nossas forças”.

 Desde 2014, os EUA e aliados enviaram mais de 300 mil milhões de dólares para a Ucrânia, mesmo assim a NATO está a perder a guerra com a Rússia. Os EUA vão enviar mais 60 mil milhões para a Ucrânia, alimentando o seu complexo militar-industrial e a corrupção do clã de Kiev, 18 mil milhões para Israel, 8 mil milhões para "controlar" a China. Isto enquanto a fome aumenta nos Estados Unidos, 17 milhões de famílias lutavam para comprar alimentos devido à inflação em 2022, um aumento de 2,6% em relação ao ano anterior.

 Isto é mau? Não, do ponto de vista capitalista, talvez indiretamente apenas. Em termos capitalistas a economia só vai mal quando não gera lucros que a oligarquia considera suficientes. O que não é bem o caso. O dinheiro despejado, por exemplo, para Kiev tem dois bons retornos. Com uma lei liberal promovida pelos oligarcas, os maiores proprietários de terras são agora uma mistura de oligarcas ucranianos e a agroindústria transnacional, cuja posse no início de 2023 já excedia 28% das terras aráveis. Compreende-se portanto a propaganda às "maravilhas" do liberalismo face aos "horrores" das cooperativas socialistas.

 O conflito na Ucrânia tornou-se uma grande oportunidade para as empresas de produção militar dos EUA. Em relação a 2022, as ações da Lockheed Martin, RTX, Northrop Grumman e General Dynamics cresceram 12,78%. A Lockheed Martin teve de receita em 2023, 69,6 mil milhões de dólares, mais 5,28% em relação a 2022. A General Dynamics, 42,3 mil milhões, mais 7,3% em relação a 2022. A RTX Corporation, 68,9 mil milhões em 2023, mais 3% em comparação com 2022. A Northrop Grumman mil milhões, mais 7% que em 2022. (Geopolítica ao vivo, Telegram, 27/04). Os M777 custavam em 2008, 2 milhões de dólares, em 2023, 4 milhões; os M1HIMARS, passaram de 3,5 milhões em 2014 para 4,3 milhões em 2022; os Bradley em 2016, 1,84 milhões, em 2022 de 3,3 a 4,5 milhões em 2022; os Abrams em 1998, 4,3 milhões, em 2023, 10,6 milhões; os Patriot em 2003, 225 milhões, em 2022 1000 milhões, os seus mísseis em 2003, 2 milhões cada, em 2022, 4,1 milhões. (Geopolítica ao vivo, Telegram, 27/3). Compreende-se que quem defende a paz na Ucrânia seja acusado de "putinista"...

 O objetivo dos países da UE/NATO desenvolverem o seu potencial militar, até agora não tem passado de palavrório inconsequente. Não existe um plano, considerando as tarefas, o seu cronograma, a capacidade tecnológica, os recursos humanos, respetiva qualificação e organograma, recursos financeiros, aprovisionamento de matérias primas, equipamentos, componentes eletrónicos. Claro que para quem está formatado nas políticas de desastre neoliberal é difícil entender o que significa a planificação macroeconómica. Difícil de entender é como vão passar das palavras aos atos, em economias em estagnação desde 2000, em recessão ou estagflação desde 2022, tendo aplicado sanções ou levado ao caos países com os quais poderiam manter um mutuamente vantajoso comércio internacional.

 Mais difícil ainda é entender como políticos tão desacreditados como os atuais vão convencer as pessoas a alinhar nos seus delírios belicistas. Quanto ao potencial militar as "armas maravilha" que iam fazer a diferença na Ucrânia, são hoje sucata pelos campos ucranianos ou estão em exposição em Moscovo – até ao fim do mês.

 A submissão da UE/NATO aos desígnios imperiais dos EUA traduziu-se no seu relativo declínio:  Em 2008, a economia da UE era ligeiramente maior do que a dos Estados Unidos. Agora a economia dos Estados Unidos é quase um terço maior que a da UE mais o RU. A Eurointelligence informa que um inquérito às PME na Alemanha registou, em diferentes graus, que 90% estavam insatisfeitas com as políticas da UE.

 O sentimento predominante nas populações é contra a guerra, as suas principais preocupações são as suas condições de vida. Estando a propaganda a esgotar a sua capacidade de manipulação a "democracia liberal" recorre como habitualmente à repressão de que são exemplo as violências e prisões nas universidades norte-americanas de manifestantes contra os massacres cometidos em Gaza, além das leis em preparação para criminalizar como antissemitismo críticas a Israel.

 A UE/NATO tornou-se um apêndice dos EUA, mas que economia têm os próprios EUA para financiar a guerra na Europa, a de Israel com a economia em profunda recessão ou as provocações contra a China? O défice comercial é superior a 1 milhão de milhões de dólares, os juros da divida federal representam 3,5% do PIB, a dívida federal está em 34,6 milhões de milhões, 122,2% de um PIB inflacionado com capital fictício. Quer as guerras quer as "revoluções coloridas" tornaram-se sorvedouro de dólares, portanto dívida, numa situação em que a desdolarização prossegue a nível global. A participação estrangeira em notas e Títulos do Tesouro passou de 63% em 2009 para 33% em 2023, impulsionando a procura do ouro e a sua compra pelos Estados.

As guerras do "fim da história"

 Guerras que não asseguraram o fim pretendido pelo imperialismo, conduziram pelo contrário ao fim do império global (que nunca chegou a ser graças a alguns irredutíveis de que Cuba e a RPDC são exemplo). O império tenta sobreviver, sabendo que se avançar para além das linhas vermelhas traçadas pela Rússia e pela China terá uma guerra nuclear a que o seu território não escapará.

 O império das "regras" vai somando falhanços:  na Ucrânia; em Israel, que ao fim de sete meses de barbaridades enfrenta a derrota dos seus proclamados objetivos; os EUA não conseguiram derrotar os Houthis no Mar Vermelho, o Irão aparece como a grande potência regional.

 As guerras estão a destruir as economias do bloco ocidental, enquanto o resto do mundo se vai alinhando com o bloco liderado pela Rússia e a China. Não é só Israel que não tem capacidade económica, financeira, industrial para suportar uma guerra de longo prazo, o bloco ocidental tem problemas idênticos. Nunca pelos crânios dos politicamente idiotas, indiferentes à simples lógica, como os que se pavoneiam pela NATO e pela UE, passou pela cabeça que ao fim de dois anos estivessem na situação atual. As sanções conduziram ao aumento dos custos da energia, acelerando a desindustrialização, a inviabilidade da agricultura, o empobrecimento da população. A UE/NATO apenas conseguiu tornar-se mais dependente dos EUA e irrelevante a nível internacional. Só em contas de energia estima-se que as sanções custaram à UE/NATO um milhão de milhões de euros.

 Claro que no ocidente vivemos uma economia de guerra: contra os pobres, contra os trabalhadores, contra todos os que não seguem a globalização neoliberal e as “regras” definidas pelos EUA. No RU, o primeiro-ministro Sunak pretende aumentar os gastos com defesa para 2,5% do PIB, como resposta às "ameaças à segurança global". Impor uma economia de guerra, dá jeito para calar as contestações que percorrem a UE/NATO.

 Quando a diplomacia sai, entra a linguagem da força. O ocidente ainda não entendeu que cessou o tempo do "quero posso e mando" ou como disse impante Hillary Clinton, referindo-se ao bárbaro assassinato de Kadafi, "chegámos, vimos e ele morreu".

 Quando se diz que a Rússia tem de ser vencida, quando Cameron do RU diz que os mísseis Stringer podem legitimamente atacar o território russo e os mais excitados querem formalizar a guerra entre a NATO com tropas no terreno, a Rússia, responde que o RU pode tornar-se também um alvo legítimo e realiza exercícios militares com armas nucleares táticas. E depois?

 O ocidente tem que fazer uma escolha que nada tem que ver com a de Macron. Na realidade, é um dilema: ou aceitar que não lhe compete dirigir o mundo nem possui qualquer excecionalidade ou enfrentar guerras em três frentes (na Europa, no Médio Oriente e no Extremo Oriente sobre Taiwan) que acabarão por se transformar numa única:  a 3ª Guerra Mundial. Entretanto, os media corporativos assumem como função evitar que as populações tomem consciência da situação e sejam como habitualmente postas perante factos consumados.

 

[Artigo tirado do sitio web portugués Resistir.info, do 8 de maio de 2024]

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