Portugal: A política do choque
Sandra Monteiro -
Como se impede o crescimento destas forças e a sua tomada do poder? Há certamente um elemento que nunca pode ser esquecido: é preciso combater as causas socioeconómicas, políticas e culturais que permitiram a estas forças crescer tanto que ameaçam o regime democrático
Todos os dias, ou quase, o partido que em Portugal representa a nova extrema-direita diz alguma coisa que choca e faz temer um futuro em que nem os mais básicos valores de humanidade sejam respeitados. Com crescente intensidade e gravidade, multiplicam-se os insultos e os ataques, bem como os espaços em que acontecem. Ocupar o lugar de segundo maior grupo parlamentar não trouxe aos mais frágeis que nesse partido votaram nenhuma das mudanças que esperavam para melhorar as suas vidas. Aumentou o volume dos ataques contra os mais fragilizados, transformados em bodes expiatórios, mas não resolveu nenhuma das causas da raiva e do medo da maioria que vive mal. Cavalgar a crise social sempre foi a forma de estes partidos chegarem ao poder e a seguir fomentar crise social e desigualdades.
Como se impede o crescimento destas forças e a sua tomada do poder? A pergunta nunca tem resposta fácil. E parece ainda mais difícil em países como Portugal, onde o seu crescimento acontece a uma velocidade estonteante, cavalgando desigualdades profundas e persistentes, aproveitando debilidades do movimento social e dos partidos de esquerda, apoiando-se no deslumbramento antidemocrático dos media com as audiências polarizadas que estas figuras alimentam, e beneficiando da experiência internacional acumulada pelas direitas extremas. Mesmo que não se saiba responder a tudo, há certamente um elemento que nunca pode ser esquecido: é preciso combater as causas socioeconómicas, políticas e culturais que permitiram a estas forças crescer tanto que ameaçam o regime democrático.
Será fácil concentrarmo-nos neste combate, mesmo quando sabemos que das mesmas causas é sensato esperar os mesmos efeitos? Não é nada fácil. O quotidiano é constantemente desafiado por palavras e materiais de propaganda com tons e conteúdos inaceitáveis, a que não se pode nem consegue deixar de reagir. Umas vezes manifestando indignação, em particular nas redes sociais, outras recorrendo a instâncias jurídicas. Tem sido também assim noutros países, alimentando um ciclo de acusações e contra-acusações que percorrem vários temas, que vão dos limites (liberais ou democráticos?) à liberdade de expressão até às (falsas) equivalências dos extremos. Esta reatividade é provavelmente inevitável. Quem somos e até onde nos podem arrastar se não dizemos que há limites? Mas vale a pena pensar, e atuar, de modo a diversificar as respostas que dão forma ao ecossistema global do combate à extrema-direita. Em primeiro lugar, porque a reação como reatividade é extenuante. Produz um cansaço que tem, aliás, paralelos com o que vivemos no tempo em que tivemos de adaptar comportamentos às condições que a pandemia de Covid-19 diariamente impunha. Viver em choque permanente, sem fim à vista, e numa tentativa constante de reagir ao impensável não é fácil. Nem tem produzido, em política, os efeitos desejados.
Talvez desacelerar essa velocidade vertiginosa passe por juntar organização e ação coletivas às respostas individuais, de cada um em sua casa frente a um ecrã. Talvez passe por a política, em particular de esquerda, não se deixar tomar por lógicas também elas individuais, como a excessiva personalização ou a difusão de «notas» dadas a candidatos em debates televisivos. Essas lógicas privilegiam manobras táticas e estratégias que esvaziam o debate de uma semântica propriamente política, capaz de orientar as escolhas. Isso pode facilitar o trabalho do jornalismo preguiçoso; pode até favorecer uma direitização mascarada de apelos à «responsabilidade» e «moderação» da esquerda; mas não consolida a cidadania democrática.
Talvez recuperar forças passe, também, por lembrar que nem tudo aquilo a que tem de se responder é tão novo assim. O racismo, a xenofobia e o ódio que a extrema-direita difunde é uma parte bem antiga das políticas de discriminação institucional e de falsa oposição entre os que são sujeitos a políticas inigualitárias e excludentes. Mais ou menos extremados, os neoliberais e os sociais-liberais que os acompanham sempre procuraram reverter as conquistas laborais e sociais dos trabalhadores impostas pela esquerda política e social a seguir ao 25 de Abril. Tudo isto, com muito pouca novidade, é hoje bem visível.
O Orçamento do Estado para 2026 mostra que a extrema-direita pode ser necessária para concretizar novas escaladas fascizantes, discriminatórias e autoritárias, mas não é a única força a aplicar as políticas que facilitam essas escaladas. Elas estão aí: uma reforma laboral profundamente regressiva ao nível dos direitos dos trabalhadores; uma contenção de salários e pensões que resultam em novas perdas de poder de compra; negação do direito à habitação a par de incentivos fiscais, e outras benesses, ao rentismo financeiro e imobiliário; cortes de centenas de milhões de euros no orçamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS), incluindo em medicamentos e profissionais de saúde, tendo até sido recomendado o abrandamento de consultas e cirurgias; e, como era esperado, um aumento inédito na Defesa de 25%, com mais 772 milhões de euros.
A irresponsabilidade dos que continuam a dizer-se democratas é total. Vão retirar ao Estado social, e em particular a serviços públicos como o SNS, as dotações de que este urgentemente precisa e que poderiam desartilhar os argumentos xenófobos de quem, por exemplo, tenta convencer os cidadãos de que não têm médico e consultas atempadas por causa do afluxo de imigrantes. A seguir vão entregar o dinheiro ao «grande rearmamento europeu», e não é pouco: «Atingir os 5% (do produto interno bruto, PIB) na década de 2030 significaria gastar em despesa militar 88% do que se gasta hoje com saúde pública no nosso país»(1). Quando se instalar a crise social que estas políticas promovem, será realmente uma surpresa a chegada ao poder da extrema-direita? Ou que esta encontre já um Estado muito pouco social, profusamente armado e securitário?
Em todo o caso, um dos neoliberais que foi responsável pela pior crise que Portugal viveu neste século, e que não esconde as cumplicidades que o une à extrema-direita, já apareceu a abrir caminho para a próxima escalada austeritária. No passado dia 31 de outubro, numa intervenção (pasme-se) no Congresso Internacional do Cooperativismo em Lisboa, o ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho anunciou: «Chegou o fim das margens de manobra que permitem ir adiando decisões importantes» e «já não vale a pena haver mais cálculos eleitorais» nem «perder tempo com preocupações distributivas»(2). O seu cartaz discriminatório seria então qualquer coisa como «Isto aqui não é um Estado social». Ou talvez «Isto aqui não é uma democracia». É que Passos Coelho felicitou o governo de Luís Montenegro por ter transformado o Orçamento do Estado num (mero) instrumento para o país «cumprir as suas obrigações externas e internas», não devendo «ser palco de outras discussões». Por ele suspendia-se o Estado social e os mecanismos igualitários redistributivos; suspendia-se a democracia parlamentar… As suas palavras dificilmente seriam mais chocantes. Mas mal se sente, no meio de tanto choque.
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Notas:
(1) João Rodrigues e Paulo Coimbra, «Guerra e paz em Portugal», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, agosto de 2025.
(2) Lusa, «Passos pede ao Governo que não adie decisões por cálculos eleitorais e “preocupações distributivas”», RTP, 31 de outubro de 2025.
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[Artigo tirado da edición portuguesa de Le Monde Diplomatique, novembro de 2025]

